Quando a campainha da porta soou, naquela manhã de pascoa, Aninha a filha de quatro anos dos Pereira correu para abrir e encontrou um pintinho muito bem aninhado numa caixinha que estava no degrau da entrada. Era como uma bola amarela e fofa com os olhos que pareciam duas continhas pretas brilhantes e um bico clarinho, sempre pronto a bicar tudo que estivesse ao seu alcance.
A menininha entrou num verdadeiro êxtase, quando o pintinho, depois de pular desajeitadamente para fora da caixinha, começou a patinar por toda a parte da sala, muito cômico, cambaleando atrás dos calcanhares dela.
Tornaram-se grandes amigos.
O pintinho não via outra coisa neste mundo a não ser Aninha. Quando ela andava, ele a seguia; se ela corria, ele saracoteava ligeiro atrás dela.
Aninha deu ao pintinho o nome de Vandeco. Juntos, no jardim dos fundos, descobriram durante todo o verão seguinte, um verdadeiro mundo extraordinário . A menina e o franginho corriam atrás das borboletas, brincavam no amontoado de areia que ali havia num caixote e também brincavam de esconder entre as pequenas árvores.
Vandeco foi crescendo, ficou maior que os galos comuns e, um ano depois, quando a segunda filinha dos Pereira nasceu, ele já era um camarada robusto e bem formado.
Após estudar por algum tempo a nova criaturinha de cabelos ruivos, Vandeco bateu súbito as amplas asas contra os flancos. Soltou de repente um forte grasnado, e se acomodou resolutamente ao lado do berço.
Com este grito estranho e selvagem, Vandeco estava proclamando aos quatro ventos que era enfim um galo adulto e, que sobre seus ombros pesava agora a grave responsabilidade de proteger e guardar um pequenino ser indefeso e fraco.
Não houve outro jeito, foi preciso levantá-lo a força para fora do quarto, apesar de todos os seus protestos e silvos.
-2-
Com o passar das semanas, finalmente acabou por se infiltrar no seu pequeno miolo de galo, a noção de que o seu ar de sentinela só se tornava necessário quando a pequenina Cristiane ia para o jardim dos fundos tomar o seu banho de sol.
Nessa hora, ficava postado na porta do jardim dos fundos, esperando.
Depois, quando o carrinho era colocado ao sol o galo se posicionava debaixo dele, num estado de visível inquietação e a seguir lá ficava como um soldado em posição de sentinela.
A mamãe Pereira tinha todos os motivos para se sentir grata pela ajuda que Vandeco vinha prestando.
Apesar dos pedidos constantes, era impossível ensinar Aninha e as suas amiguinhas de manterem fechado o portão do jardim dos fundos. No entanto, enquanto o galo estivesse lá, não havia ser humano ou irracional que ousasse penetrar o jardim.
Um belo dia uma epidemia de raiva surgiu entre os cachorros do bairro. E, na manhã de sábado, na hora em que o bebê estava no jardim com Vandeco fazendo sentinela debaixo do carrinho, uma amiga alarmada telefonou.
-“Acabo de ver um cachorro a caminho do seu jardim, e se não me engano este cão é raivoso”.
A mamãe Pereira ficou apavorada. Logo pensou no portão; será que alguma criança o teria deixado aberto? Ficou assustada e correu logo para os fundos da casa, sentindo as pernas tremendo de medo. Ainda não tinha percorrido a metade da distância, quando pela segunda vez, ouviu o galo soltar aquele grasnado estrondoso e selvagem… Então compreendeu tudo!
Gritando pela filha, chegou até a porta do jardim para se deparar com uma cena que ia se gravar na lembrança pelo resto da vida: a menos de três metros do carrinho do bebê, estava um cachorro enorme, de olhos vermelhos e da boca escorria baba.
De asas abertas e com o bico de ébano abrindo e fechando em estalos ameaçadores, o galo avançava ao encontro dele…. Depois, tudo se apagou da consciência desta mãe desesperada menos o desejo irresistível de pegar o bebê em seus braços e fugir de lá para um lugar seguro.
-3-
Como conseguiu é talvez inexplicável ! Mas o certo é que se colocou a salvo com a filha. Assim que entrou, correu para telefonar à polícia.
Tremendo de medo a mãe aflita se encostou à porta fechada, escutando a horripilante batalha que estava se travando lá fora. Os latidos e grunhidos do cão raivoso gelaram o sangue nas veias e anunciavam que Vandeco estava batalhando, palmo a palmo, por todo o jardim. Os repetidos batidos de seus corpos em luta soavam surdamente na parede da casa. Depois, o bater das grandes asas do galo, os estalos que ele dava com o bico e o som dos maxilares do cachorro foram se afastando e enfraquecendo….até que, no final se ouviu o primeiro som de dor que Vandeco soltou.
Não havia arma de fogo dentro daquela casa, e não era possível que a polícia chegasse ainda a tempo de salvá-lo!
Mamãe Pereira orava, pedindo a Deus que fizesse Vandeco compreender, de algum modo, o perigo que corria e fugir do alcance do cão raivoso antes que fosse demasiadamente tarde. Sra. Pereira sabia porém que ele não iria fugir a luta; o seu nobre coração simplesmente se recusava a pedir tréguas, enquanto o inimigo não fosse expulso do jardim.
……………….
Um dos policiais aproximou-se da porta e disse
-“ Quero que a Senhora veja um espetáculo como nunca tornará a ver!”.
O jardim estava deplorável. As cadeiras estavam caídas. Flores e plantas pisoteadas. O carrinho do bebê estava de pernas para o ar, e através do caixote de areia, que antes tinha sido a felicidade de uma garotinha e de um galo avermelhado e penugento, corriam em zigue-zague rastros de sangue. Atravessando o portão, de asas abertas, jazia o tão querido galo com o longo pescoço estirado para fora e o bico de ébano tingido agora de escarlate. Tinha o pescoço fraturado. Um pouco além da porta do jardim, na calçada, jazia o corpo do cão.
-“Acho que a bala nem era necessária.”, disse o policial examinando com grande espanto a cabeça mutilada do cachorro.
-4-
Algum instinto primitivo, talvez de um obscuro passado selvagem, deve ter segredado a Vandeco que “resistisse” até expulsar o inimigo daquele pequeno pedaço de terra, para ele “sagrado”….
Como recordação deste feito, mamãe Pereira colocou no jardim uma pequena estátua branca de Vandeco, o galo heroico.
Marie-Claire